Filósofo Vagabundo (4)

>> maio 03, 2009


“Há qualquer coisa de absorvente e irresistível na vagabundagem. É uma volúpia isto de a gente se sentir emancipado a todos os devedores, de todas as prisões da existência que não podem quebrar quando se vive entre os seus semelhantes; de todas as pequenas coisas que tornam a vida aborrecida e que fazem dela, em vez de alegria que deveria ser, uma carga insuportável. E para quê? Por deveres do género desse que nos obriga a vestir de certa maneira, a falar de certo modo, a fazer tudo segundo os hábitos e não segundo os nossos desejos.
Quando a gente encontra qualquer conhecido tem de lhe perguntar: “Tem passado bem? – como é costume, e não: “Rebenta para aí” – como seria às vezes o nosso desejo.
Em geral, para dizer a verdade, que são essas relações solenemente estúpidas entre pessoas distintas? Uma triste comédia. E até uma vil comédia, porque um homem não diz ao outro que está na sua presença: “Você é um imbecil e um tratante!” E se assim acontece, o facto não passa de um desses ataques de sinceridade a que se chama cólera.
E na condição de vagabundo vive-se à margem dessas bagatelas.
O facto de se ter renunciado, sem mágoa, a algumas facilidades da vida, e de se poder viver sem elas, eleva-nos aos nossos próprios olhos de uma maneira agradável. A gente torna-se mais indulgente consigo mesmo.
Eu nunca fui muito severo para com a minha pessoa, e os dentes da minha consciência nunca me fizeram grande dano; e tão pouco me tenho entretido a arranhar o coração com as garras da inteligência.
Desde muito novo que, sem mesmo dar por isso, tomei para meu uso a filosofia mais sábia e mais simples. “De qualquer maneira que vivas, tens de morrer”.Sendo assim, para que há-de uma pessoa cansar-se a seguir pela esquerda, quando a natureza, com todas as suas forças, nos arrasta para a direita? Eu não posso suportar as pessoas que se partem ao meio. Para que o fazem? Já me tem acontecido falar com gente dessa. Então pergunto-lhes: “Que sentes irmã? Porque te escandalizas, amigo?”, “Esforço-me por conseguir a perfeição”, respondem-me. “E para quê?”, “Como, para quê? Porque na perfeição do homem reside o bom sentido da vida”.
Pois bem, eu não entendo assim. No aperfeiçoamento da árvore, há uma razão evidente: a perfeição para que possa servir de alguma coisa; empregam-na para fazer berços, caixões e outros objectos úteis ao homem. Mas, enfim, se te aperfeiçoares é lá por tua conta; no entanto, diz-me porque me acusas e para que queres converter-me à tua fé?
Respondem-me:
- Porque és ignorante e não procuras o sentido da vida.
- Pois encontrei-o, sou um idiota e a consciência da minha imbecilidade acabrunha-me.
- Mentes – dizem esses loucos. – Se te apercebes do teu estado, deves corrigir-te.
- Como, corrigir-me? Eu vivo em paz comigo mesmo. A razão e os pensamentos são em mim uma e a mesma coisa, a palavra e a acção estão em mim em perfeita harmonia.
- Isso – dizem – é baixeza e cinismo.
É assim que todos julgam. Sei que mentem e que são idiotas, sei isso, e não posso desprezá-los, porque conheço, e se amanhã se declarasse honrado, puro e bom, tudo o que hoje é vil, sujo e mau, todos esses honrados seriam, puros e bons, desde amanhã, sem o mínimo esforço.
Dirá o senhor que isto é ir demasiado longe. Não é tal e já se convencerá. Eu digo: sirvo a Deus e ao Diabo. Um verdadeiro miserável vale sempre mais que um falso honrado. Há uma cor branca e outra negra; se as misturarem, resultará uma cor suja.
Em toda a minha vida só conheci homens honrados, dessa honradez de pedacitos desiguais que esses indivíduos tinham apanhado debaixo das janelas, ou em caixotes de lixo…
Há outra honradez pedante: a que o homem aprende nos livros e que lhe serve, como os fatos novos, para os dias de gala. E, em geral tudo o que é bom na maioria das pessoas honradas não é natural; usam-no para se pavonearem umas diante das outras.
Tenho topado com pessoas boas por natureza… Mas estas encontram-se poucas vezes e quase exclusivamente entre gente simples, fora da cidade…
Compreende-se imediatamente que são bons, logo se vê que nasceram bons e sérios.
De resto, que o diabo os leve a todos: aos bons e aos maus.”

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