A moral dos puritanos

>> setembro 28, 2009

«Os puritanos consideram-se as pessoas com mais moral do mundo e além disso guardiães da moralidade dos seus vizinhos (…). O seu modelo parece a senhora daquele conto… recordas-te? Chamou a polícia para protestar porque havia uns miúdos nus a tomar banho frente à sua casa. A polícia afastou os miúdos, mas a senhora voltou a chamá-la, dizendo que estavam a tomar banho (despidos, sempre despidos) um pouco mais acima e que o escândalo se mantinha. A polícia afastou-os de novo e a senhora tornou a protestar. “Mas, minha senhora – disse o inspector –, se os mandámos para mais de um quilómetro e meio de distância…”. E a puritana respondeu, “virtuosamente” indignada: “Sim, mas com os binóculos continuo a vê-los!”»

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Contra a monogamia

>> setembro 27, 2009

«Na monogamia o homem tem demasiado de uma vez e demasiado pouco a longo prazo; e a mulher ao contrário». Por isso conclui-se: «Os homens andam nas putas durante metade das suas vidas e são cornudos durante a outra metade.»

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Acabar com o romantismo

>> setembro 24, 2009

Cada um diz ao outro que não é um deus; assim se acaba com o romantismo.

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Recusamos a divindade

>> setembro 23, 2009

Recusamos a divindade, a fim de partilhar as lutas e o destino comuns. Escolhemos o pensamento audacioso e frugal, a acção lúcida, a generosidade do homem advertido. No seio da luz, o mundo continua a ser o nosso primeiro e o nosso último amor. Os nossos irmãos respiram debaixo do mesmo céu que nós; a justiça encontra-se viva. Nasce então a alegria singular que ajuda a viver e a morrer e a qual, doravante, nos recusamos a remeter para mais tarde. À superfície da terra dolorosa, ela é o joio pertinaz, o amargo sustento, o vento áspero que vem dos mares, a antiga e nova aurora. Com ela ao longo dos combates, refaremos a alma deste nosso tempo e um mundo que nada excluirá.

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Regra original

>> setembro 22, 2009

«A única regra original de hoje: aprender a viver e a morrer e, para ser homem, recusar ser deus».

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Estranho amor

>> setembro 21, 2009

Há sem dúvida um mal que os homens acumulam no seu desejo arrebatado de unidade. Mas outro mal ainda se verifica na origem deste movimento desordenado. Perante esse mal, perante a morte, o homem clama justiça no mais profundo do seu ser. O cristianismo histórico não respondeu a esse protesto contra o mal a não ser por meio do anúncio do reino, depois, pelo da vida eterna, expectativa que exige fé; por isso se mantém solitário e sem explicação. As multidões trabalhadoras, cansadas de sofrer e de morrer, são multidões sem Deus. O nosso lugar é, a partir de então, junto delas e longe dos antigos e novos doutores. O cristianismo histórico transfere para lá da história a cura do mal e do assassínio que, no entanto, na história se suportam. Também o materialismo contemporâneo julga responder a todas as perguntas. Mas, na sua totalidade de servidor da história, ele dilata o domínio do assassínio histórico e deixa-o ao mesmo tempo sem justificação que não seja relegada para tempos futuros, o que novamente exige fé. Há, nos dois casos, que esperar e, entretanto, o inocente continua a morrer. Em pleno século vinte e um, a soma total da crueldade não diminui no mundo. Nenhuma parúsia, nem divina, nem revolucionária, se cumpriu. Subsiste, colada a todos os sofrimentos, uma injustiça, mesmo que aos olhos humanos seja considerada bem merecida.

A revolta não pode prescindir de um estranho amor. Os que não encontram descanso nem em Deus nem na história, condenam-se a viver para quem, como eles, não pode viver: para os humilhados. Esta loucura generosa é a da revolta, que oferece imediatamente a sua força de amor e com a mesma brevidade recusa a injustiça. A sua honra consiste em nada calcular e em tudo distribuir à vida presente e aos seus irmãos vivos. É assim que se vai prodigalizando em relação aos homens futuros. A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo ao presente.
Assim prova a revolta ser o próprio movimento da vida e afirma que não pode ser negada sem que se renuncie a viver. Cada vez que ela se solta no ar a pureza do seu grito, provoca uma atitude corajosa em mais um ser. Ela é portanto amor e fecundidade, ou então nada é. A revolução sem honra, a revolução do cálculo que, preferindo um homem abstracto ao homem de carne, nega o ser tantas vezes quantas considerar necessário, coloca precisamente o ressentimento no lugar do amor. Assim que a revolta, esquecida das suas generosas origens, se deixa contaminar pelo ressentimento, nega a vida; corre para a destruição e faz erguer-se a coorte desprezível desses rebeldezinhos, semente de escravos, que actualmente acabam por se oferecer, em todos os mercados mundiais, a qualquer servidão. Já se não trata de revolta nem de revolução, mas de rancor e tirania. Nessa altura, quando a revolução se converte, em nome do poderio da história, nessa mecânica assassina e desmesurada, uma nova revolta se torna sagrada, em nome do equilíbrio e da vida. Encontramo-nos nesse extremo. No fim das trevas, contudo, torna-se inevitável a eclosão da luz que começamos a adivinhar e pela qual apenas teremos de lutar para que ela se manifeste. Para além do niilismo, todos nós, no meio das ruínas, preparamos um novo renascimento. Mas poucos sabem disso.
E, com efeito, a revolta, sem aspirar a resolver todas as coisas, pode já, pelo menos, opor-se. A partir desse instante, o meio-dia imunda o próprio movimento da história. Em volta desse braseiro devorador, agitam-se por momentos combates de sombras, que desaparecem, e de cegos que, levando as mãos às pálpebras, gritam que isto é história. Os homens da Terra, abandonados às sombras, afastaram-se do ponto fixo e radiante. Esquecem o presente por amor do futuro; os seres escravizados, pelos fumos do poder, a miséria dos subúrbios, por amor de uma cidade radiosa e a justiça quotidiana por uma vã terra prometida. Perdida a esperança quanto à liberdade das pessoas, sonham com uma estranha liberdade da espécie; recusam a morte solitária e chamam imortalidade a uma prodigiosa agonia colectiva. Já não acreditam puerilmente que amar um só dia da existência equivalia a justificar os séculos de opressão. Essa a razão por que eles quiseram a alegria do mundo, adiando-a para outros tempos. A impaciência dos limites, a recusa do seu duplo ser, o desespero de ser homem, precipitaram-nos por fim num descomedimento desumano. Negando a justa grandeza da vida, tiveram de apostar na própria excelência das suas pessoas. À falta de melhor, divinizaram-se. Assim começou a sua desgraça: esses deuses são de olhos vazios.

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Revolução

>> setembro 18, 2009

Uma revolução à escala mundial de alto a baixo, em todos os países, em todas as classes, em todos os domínios da consciência. O inimigo do homem é o próprio homem, o seu orgulho, os seus preconceitos, a sua estupidez, a sua arrogância. Nenhuma classe está imune, nenhum sistema possui uma panaceia. Cada um, individualmente, tem de se revoltar contra um modo de vida que não é o seu. A revolta, para ser eficaz, tem de ser contínua e inexorável. Não chega derrubar governos, senhores, tiranos: cada um tem de derrubar as suas próprias ideias preconcebidas de certo e errado, bom e mau, justo e injusto. Temos de abandonar as trincheiras arduamente disputadas em que nos metemos e sair para terreno aberto, e renunciar às nossas armas, aos nossos haveres, aos nossos direitos como indivíduos, classes, nações, povos. Mil milhões de homens que procuram a paz não podem ser escravizados. Escravizámo-nos a nós próprios com a nossa visão mesquinha e circunscrita da vida. É magnífico oferecer a própria vida por uma causa, mas os mortos não realizam nada. A vida exige que ofereçamos algo mais: espírito, alma, inteligência, boa vontade. A natureza está sempre pronta a preencher as lacunas deixadas pela morte, mas a natureza não pode oferecer a inteligência, a vontade, a imaginação para derrotar as forças da morte. A natureza restaura e repara, mais nada. Ao homem cabe irradicar o instinto homicida, que é infinito nas suas ramificações e manifestações. É inutil invocar Deus como é vão responder à força com força. Toda a batalha é um casamento concebido em sangue e angústia, toda a guerra é uma derrota para o espírito humano. A guerra é apenas uma imensa manifestação, em estilo dramático, dos falsos, ocos e pseudo conflitos que diariamente têm lugar em toda a parte, até mesmo nos chamados tempos de paz. Todo o homem contribui com a sua parte para manter a carnificina em acção, até aqueles que parecem manter-se afastados. Estamos todos envolvidos, participamos todos, quer queiramos quer não. A Terra é criação nossa e nós temos que aceitar os frutos da nossa criação. Enquanto nos recusarmos a pensar em termos do bem do mundo e dos bens do mundo, de ordem mundial e paz mundial, assassinar-nos-emos e atraiçoar-nos-emos uns aos outros. Isso pode continuar até à trombeta do juízo final, se desejarmos que seja assim. Nada pode trazer um mundo novo e melhor, a não ser o nosso próprio desejo que ele chegue. O homem mata por medo. Desde que começemos a chacinar, não haverá fim para isso. Uma eternidade não chegará para vencer os demónios que nos torturam. Quem pôs lá os demónios? Eis uma pergunta para cada um fazer a si mesmo. Que cada homem sonde o seu próprio coração. Nem Deus nem o Diabo são os culpados, e certamente que não monstros tão insignificantes como Hitler, Mussolini, Estáline e outros mais. Certamente que não papões como catolicismo, capitalismo, comunismo. Para quê pôr os demónios lá, no nosso coração, para nos torturarem? É uma boa pergunta, e se a única maneira de encontrar a resposta é ir ao “Deserto”, então rogo a todos que larguem tudo e vão lá. Imediatamente.

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A arte e a revolta

>> setembro 17, 2009

A revolta tropeça constantemente no mal, mas, depois disso, tudo o que tem a fazer é ganhar novo impulso. O homem pode dominar em si tudo o que deve ser dominado. Deve refazer na criação tudo o que pode ser recriado. Depois disso, as crianças continuarão a morrer injustamente, mesmo dentro da sociedade perfeita. Mesmo esforçando-se o mais que puder, o homem só pode aspirar a diminuir aritmeticamente a dor neste mundo. Mas a injustiça e o sofrimento manter-se-ão e, por muito limitados que passem a ser, não deixarão por isso de constituir escândalo. O «porquê» deve continuar a vibrar; a arte e a revolta só se extinguirão com o último homem na Terra.

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Fazer avançar a história

>> setembro 15, 2009

«A obsessão da colheita e a indiferença pela história são as duas extremidades do meu arco.»
Se o tempo da história não é igualmente o tempo da colheita, a história não passa efectivamente de uma sombra fugaz e cruel de que o homem já não participa. Quem se consagra a essa história não se dá a coisa alguma e já não é, por sua vez, coisa alguma. Mas quem se consagra ao tempo da sua vida, à casa que defende, à dignidade dos vivos, esse dá-se à terra e dela recebe a colheita que semeia e de novo alimenta. Digamos, finalmente, que quem faz avançar a história são aqueles que sabem, no momento desejado, revoltar-se também contra ela. Isto supõe uma tensão interminável e a crispada serenidade. Mas a verdadeira vida está presente no coração desse desgarramento. Ela é o próprio desgarramento, o espírito que paira sobre vulcões de luz, a loucura da equidade, a intransigência extenuante do equilíbrio. O que, para nós, ecoa impressionantemente nos confins desta longa aventura revoltada não são fórmulas de optimismo, que de nada nos serviram nos extremos da nossa infelicidade, mas palavras de coragem e de inteligência, as quais, perto do mar, são mesmo virtude.

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Nietzsche

>> setembro 13, 2009

Não passa de um fantasma que o Ocidente teima em visitar como a imagem fulminada da sua mais alta consciência e do seu niilismo. Foi o profeta da justiça sem amor que repousa, por engano, no recinto dos ateus do cemitério de Highgate.

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Familiaridade do crime

>> setembro 11, 2009

No auge da tragédia contemporânea entramos na familiaridade do crime. As fontes de criação parecem ter secado. O medo petrifica um mundo povoado de fantasmas e de máquinas. E nele, os algozes humanistas, celebram o seu culto envolto em silêncio. Que clamores os perturbariam? Os poetas, esses perante o assassínio do seu irmão, declaram altivamente que têm as mãos limpas. O mundo inteiro desvia-se: abstrai-se do crime; as vítimas acabam de mergulhar no cúmulo das suas desgraças: aborrecem os outros. Nos tempos antigos, o sangue do assassínio provocava pelo menos um sagrado horror que desse modo santificava o preço da vida. O que condena verdadeiramente esta época é o dar a impressão de que, pelo contrário, ela não é suficientemente sangrenta. O sangue já se não torna evidente; não salpica bem até acima os rostos dos nossos fariseus. Eis o extremo do niilismo: o assassínio cego e furioso converte-se num oásis, e o criminoso imbecil parece repousante ao lado dos nossos inteligentíssimos carrascos.

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A gargalhada final

>> setembro 10, 2009

«Aconteceu certa vez num teatro que houve fogo nos bastidores. O palhaço correu a avisar o público da ocorrência. Pensaram que se tratava de uma graça e aplaudiram; ele repetiu e eles riram-se ainda mais. De igual modo, penso que o mundo acabará com uma gargalhada geral dos simpáticos espectadores, acreditando que se trata de uma graça

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Aqueles que nos faltam

>> setembro 09, 2009

Aqueles que nos faltam, sem alarde ou vaidade, atingiram a dimensão superior do ser humano e por isso nos faltam: porque eram revolucionários.
Descobriram que a história era uma burla e tornaram-se sábios para escrevê-la com a caligrafia da dignidade. Tinham sido chamados a triunfar e preferiram ser solidários. Despojaram-se da pele da pátria e foram habitantes da grande família humana.

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Big Brother

>> setembro 08, 2009

"A electrónica permite reunir nos mesmos instrumentos e nos mesmos gestos o trabalho e a fiscalização exercida sobre o trabalhador. Como se não bastasse, a electrónica permite que instrumentos destinados ao trabalho e à vigilância sejam igualmente usados nos ócios.
É graças à unificação de todos os aspectos da vida numa tecnologia integrada que a democracia capitalista pode realizar na prática as suas virtualidades totalitárias. O Big Brother já não é uma figura de estilo – converteu-se numa vulgaridade quotidiana.

A história não segue em linha recta mas em elipses, quando não desenha até labirintos. São múltiplos os percursos que unem, tantas vezes através de atalhos inesperados, as várias modalidades do capitalismo; e as formas mais totalitárias, que durante algum tempo foram postas em prática pelo capitalismo de Estado soviético a pretexto da libertação do trabalho, são hoje prosseguidas e agravadas pelo neoliberalismo a pretexto da libertação dos mercados."

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Desengana-te!

>> setembro 07, 2009


A verdade é conhecida de toda a gente, mas uma coisa conhecida de toda a gente não possui nenhum valor de troca. Está-se a ver os patifes que controlam a informação a vender verdades… Na melhor das hipóteses toda a gente se ria deles. Por uma razão bem simples. A verdade não tem nenhum futuro, ao passo que a mentira é portadora de grandes esperanças.

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Justificar o injustificável

>> setembro 06, 2009

Vimos como se esgrimem os eufemismos com o maior à vontade para justificar o injustificável.

A pior das mentiras é a verdade ligeiramente deformada”.

Devemos agitar, escrever artigos verdadeiramente agitadores, subversivos, porque a verdade é sempre subversiva.

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«Medidas de excepção»

>> setembro 04, 2009

As «medidas de excepção», sob o eufemismo de salvaguardar a ordem pública e a paz social, acabarão por declarar que os direitos humanos deixaram de ser rentáveis ou competitivos.

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Darwinismo económico

>> setembro 03, 2009

O grande perigo para a estabilidade política e para a paz social chama-se darwinismo económico, chama-se cultura do salve-se quem puder.

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Suicídio

>> setembro 02, 2009

“O suicídio é uma solução?
Há de facto duas respostas a dar ao problema: uma diz respeito ao valor da vida (que justifica ou não que a prolonguemos indefinidamente até ao limite das nossas forças); a outra tem a ver com a concordância entre as acções e o pensamento (que se traduz ou não pela passagem ao acto).
O suicídio não testemunha contra a vida. O apagamento do indivíduo é indiferente à espécie. O suicídio é a expressão derradeira de uma liberdade individual, do direito a dispor da própria vida. Aquele que se decide a esse acto pode amar a vida fixando um limite tanto ao seu amor como à sua participação activa. O suicídio não é necessariamente condenação.
A vida não pode valer nada em si. O seu preço decorre de ser a única que, à partida, nos foi dada. É acidental e, por definição, limitada: pela morte. Portanto o suicídio só coloca o problema da sua duração. A nossa cultura ocidental nunca alimentou o culto da vida: quando a terra é concebida como um «vale de lágrimas», a vida não haverá de ser mais do que um sacrifício. As artes e ofícios da guerra foram, durante muito tempo, as mais estimadas – essas mesmas que, bem mais do que qualquer tendência suicidária, constituem um verdadeiro culto da morte. (Curiosamente, o suicídio dos militares, por razões de honra, sempre foi admitido. Discutível valor, uma honra que não se manifesta no instante do acto – a traição – mas na hora da sua revelação pública! Valor que apenas protege a fachada. É a mesma que, degradada ao tempo em que a ordem burguesa mercantil se impunha, nos valeu os suicídios de banqueiros fraudulentos ou arruinados. O valor moral confunde-se, no caso, com a posição social e as posses materiais. Esses suicídios não nos interessam, precisamente por não ser a vida que eles questionam, mas sim a situação mundana, ou seja, em última análise, o poder. O valor da vida reside no exercício da liberdade que ela permite; ora, tanto os soldados como os homens de negócios renunciaram a isso, por inerência – os operários porventura também, mas não concerteza menos dependentes das mundanidades sociais, visto que delas se encontram excluídos, e por conseguinte evocariam outras razões para o seu eventual suicídio).
Para ser produtiva, a noção de liberdade pressupõe que o mundo e as virtualidades que ele encerra nos são ainda infinitamente desconhecidos, isto é: que nos cabe descobri-los. Assim, a vida em si não é nada, se não for uma oportunidade, um espaço de oportunidades a explorar. Cada vida individual terá valor apenas para aquele que a viveu, consoante o que dela soube fazer, fruir. Coragem e cobardia não se manifestam tanto face à morte como perante a vida, diante da liberdade oferecida e da incomensurável extensão do possível. A vida é um caos. A vida não tem sentido. O sentido de cada vida individual carece de ser construído. Os valores que descobrimos ou elegemos são-nos pessoais. Únicos juízes, não podemos delegar no julgamento de outrem, no veredicto social, ou seja: não podemos trocar a liberdade pela fachada. Ninguém sabe, ninguém pode pronunciar-se, a não ser nós mesmos, quando se trata de avaliar se vivemos «bem». O caos não é tranquilizador. Também não é particularmente assustador. É assaz notável constatar que a «natureza» se afigura, na sua diversidade, infinitamente acolhedora, dispensando, sem regatear, sol – luz e calor -, água, frutos, flores, etc. Tanto mais que essa mesma «natureza» nos dotou de sentidos que permitem saborear os seus dons… (muito embora tais dons se revelem insuficientes, uma vez que a história do homem é a de uma substituição sistemática dos prazeres naturais por «necessidades» sociais e artificiais). Porque o ser natural não é livre. O divórcio que separa o homem da natureza nasce do medo do caos, o divórcio que separa o homem de si mesmo nasce do medo da liberdade.
O medo da morte parece bastante inconsistente se comparado com o medo da vida e, profundamente não passa de uma extensão deste último. Paradoxalmente, é a consciência de ter vivido mal, de não ter aproveitado a vida, que faz com que as pessoas se agarrem a ela. A aventura da vida joga-se muitas vezes pondo em risco a própria vida. Quem não tem medo da vida não teme a morte. Os substitutos que as sociedades humanas inventaram – ordem, conforto, poder, etc. – em nada protegem da morte: são tão-só remédios contra a vida. Assim se vive com parcimónia e, sabendo-se que se viveu pouco, quer-se viver mais tempo. Ora, a vida, e tudo enquanto ela pode oferecer, caracteriza-se pela precariedade. Precária é a maravilha, precária a felicidade. E essa precariedade faz o seu preço. Precário o raio de sol, precária a alegria que ele me inspira. Não é pois a perda que justifica a renúncia à vida – aí tratar-se-ia de suicídios por vaidade, vaidade da posse, vaidade da permanência. Como pode então o amor à vida justificar o suicídio? Acredito na acumulação dum certo cansaço, num sentimento de diminuição que se instala. Não é a vida que está em causa, mas sim a nossa capacidade de a gozar. A consciência da precariedade não pode poupar-me. Estóicos, até mesmo epicuristas (e não só) fizeram da consciência da morte um acto de higiene mental. Todavia, nessas filosofias, a morte funciona apenas como motivo de repulsa. Parece-me que, se todos devemos estar prontos a morrer a qualquer hora, convém igualmente escolhermos a dita, sem nos entregarmos nem ao curso «natural», nem aos acidentes – ao acaso. Se a vida me foi dada, a minha liberdade deve ir até decidir do seu limite. Se devo preparar-me para a morte, que ela seja voluntária. Em função de que critério fixar esse limite? A resposta só pode ser individual. Pela parte que me toca, o sensualismo leva-me a preservar a minha integridade física. Pessoalmente, a ideia de prótese afigura-se-me contrária à vida – e assumo os riscos duma concepção deste género, por muito que os meus dentes se descarnem, que a minha vista esteja a baixar rapidamente e que, ao cabo de trinta anos de caminhada sem sapatos, os meus pés comecem a deformar-se… Vaidade é certamente: está em causa uma imagem de mim que nenhuma maquilhagem poderia restituir-me ou reconstituir. Quando «eu» se torna um outro, já morreu um pouco. Digamos simplesmente que a fórmula «viver para viver» é absolutamente oca, que se trata de viver pelos valores que forjámos e pelos prazeres de que fruímos. Viver para amar, se quisermos. Porque, no fundo, é a minha capacidade de amar que sinto obscuramente diminuir. Ou a minha capacidade de desenvoltura. Ou a minha capacidade de humor. Por agora, limito-me a encarar o limite, a fixá-lo, a olhar de frente para a morte. E só penso no suicídio por ter consciência de ter vivido bem, por nada querer mudar ou trocar na minha vida. Por ter vivido suficientemente bem para que qualquer prolongamento artificial da minha vida me pareça perfeitamente irrisório. Suicidar-se é ter escolhido a vida.”

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Mágico versus religioso

>> setembro 01, 2009

Quando se depõe flores aos pés da divindade, quando se lhe acende uma vela ou se lhe oferta um sacrifício, não significa que se esteja numa atitude religiosa.
Tais actos só serão religiosos se expressarem humildade, adoração ou sentida homenagem de um ser aberto e confiante no seu deus.
Se pelo contrário, os actos cultuais são marcados pela exterioridade, ou se se atribui ao acto em si um poder intrínseco e eficaz de modo que a sua não realização implique a não obtenção do favor, significa que o homem que os executa se afasta da essência do espírito religioso.
Assemelha-se, assim, ao mágico que, por atitudes especiais de encantamento, pretende aplacar e dominar forças invisíveis, de molde a que as coisas corram a seu contento. No fundo é o que se converte o religioso quando se convence de que as velas ou as flores constituem o meio propício de obter sucesso nos estudos ou nos negócios, de conseguir a cura de uma doença ou a fertilidade dos campos.


Apesar de ocultas, as forças que o feiticeiro crê dominar são meramente naturais. A ideia do sobrenatural é estranha ao pensamento mágico. Interessa mais, ao homem vinculado nesta atitude, provocar a ocorrência de fenómenos de proveito imediato e directamente ligados à natureza do que preocupar-se com a vida extraterrena ou com a salvação espiritual.
Além disso, as duas atitudes são distintas na sua essência. Se a do mágico é marcada pelo orgulho, a do religioso possui a marca da humildade.
O mágico acredita nas suas possibilidades de acção sobre as coisas enquanto o religioso, confessando a sua impotência, confia o seu destino nas mãos de um deus. O mágico impõe, o religioso submete-se.

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