“O suicídio é uma solução?
Há de facto duas respostas a dar ao problema: uma diz respeito ao valor da vida (que justifica ou não que a prolonguemos indefinidamente até ao limite das nossas forças); a outra tem a ver com a concordância entre as acções e o pensamento (que se traduz ou não pela passagem ao acto).
O suicídio não testemunha contra a vida. O apagamento do indivíduo é indiferente à espécie. O suicídio é a expressão derradeira de uma liberdade individual, do direito a dispor da própria vida. Aquele que se decide a esse acto pode amar a vida fixando um limite tanto ao seu amor como à sua participação activa. O suicídio não é necessariamente condenação.
A vida não pode valer nada em si. O seu preço decorre de ser a única que, à partida, nos foi dada. É acidental e, por definição, limitada: pela morte. Portanto o suicídio só coloca o problema da sua duração. A nossa cultura ocidental nunca alimentou o culto da vida: quando a terra é concebida como um «vale de lágrimas», a vida não haverá de ser mais do que um sacrifício. As artes e ofícios da guerra foram, durante muito tempo, as mais estimadas – essas mesmas que, bem mais do que qualquer tendência suicidária, constituem um verdadeiro culto da morte. (Curiosamente, o suicídio dos militares, por razões de honra, sempre foi admitido. Discutível valor, uma honra que não se manifesta no instante do acto – a traição – mas na hora da sua revelação pública! Valor que apenas protege a fachada. É a mesma que, degradada ao tempo em que a ordem burguesa mercantil se impunha, nos valeu os suicídios de banqueiros fraudulentos ou arruinados. O valor moral confunde-se, no caso, com a posição social e as posses materiais. Esses suicídios não nos interessam, precisamente por não ser a vida que eles questionam, mas sim a situação mundana, ou seja, em última análise, o poder. O valor da vida reside no exercício da liberdade que ela permite; ora, tanto os soldados como os homens de negócios renunciaram a isso, por inerência – os operários porventura também, mas não concerteza menos dependentes das mundanidades sociais, visto que delas se encontram excluídos, e por conseguinte evocariam outras razões para o seu eventual suicídio).
Para ser produtiva, a noção de liberdade pressupõe que o mundo e as virtualidades que ele encerra nos são ainda infinitamente desconhecidos, isto é: que nos cabe descobri-los. Assim, a vida em si não é nada, se não for uma oportunidade, um espaço de oportunidades a explorar. Cada vida individual terá valor apenas para aquele que a viveu, consoante o que dela soube fazer, fruir. Coragem e cobardia não se manifestam tanto face à morte como perante a vida, diante da liberdade oferecida e da incomensurável extensão do possível. A vida é um caos. A vida não tem sentido. O sentido de cada vida individual carece de ser construído. Os valores que descobrimos ou elegemos são-nos pessoais. Únicos juízes, não podemos delegar no julgamento de outrem, no veredicto social, ou seja: não podemos trocar a liberdade pela fachada. Ninguém sabe, ninguém pode pronunciar-se, a não ser nós mesmos, quando se trata de avaliar se vivemos «bem». O caos não é tranquilizador. Também não é particularmente assustador. É assaz notável constatar que a «natureza» se afigura, na sua diversidade, infinitamente acolhedora, dispensando, sem regatear, sol – luz e calor -, água, frutos, flores, etc. Tanto mais que essa mesma «natureza» nos dotou de sentidos que permitem saborear os seus dons… (muito embora tais dons se revelem insuficientes, uma vez que a história do homem é a de uma substituição sistemática dos prazeres naturais por «necessidades» sociais e artificiais). Porque o ser natural não é livre. O divórcio que separa o homem da natureza nasce do medo do caos, o divórcio que separa o homem de si mesmo nasce do medo da liberdade.
O medo da morte parece bastante inconsistente se comparado com o medo da vida e, profundamente não passa de uma extensão deste último. Paradoxalmente, é a consciência de ter vivido mal, de não ter aproveitado a vida, que faz com que as pessoas se agarrem a ela. A aventura da vida joga-se muitas vezes pondo em risco a própria vida. Quem não tem medo da vida não teme a morte. Os substitutos que as sociedades humanas inventaram – ordem, conforto, poder, etc. – em nada protegem da morte: são tão-só remédios contra a vida. Assim se vive com parcimónia e, sabendo-se que se viveu pouco, quer-se viver mais tempo. Ora, a vida, e tudo enquanto ela pode oferecer, caracteriza-se pela precariedade. Precária é a maravilha, precária a felicidade. E essa precariedade faz o seu preço. Precário o raio de sol, precária a alegria que ele me inspira. Não é pois a perda que justifica a renúncia à vida – aí tratar-se-ia de suicídios por vaidade, vaidade da posse, vaidade da permanência. Como pode então o amor à vida justificar o suicídio? Acredito na acumulação dum certo cansaço, num sentimento de diminuição que se instala. Não é a vida que está em causa, mas sim a nossa capacidade de a gozar. A consciência da precariedade não pode poupar-me. Estóicos, até mesmo epicuristas (e não só) fizeram da consciência da morte um acto de higiene mental. Todavia, nessas filosofias, a morte funciona apenas como motivo de repulsa. Parece-me que, se todos devemos estar prontos a morrer a qualquer hora, convém igualmente escolhermos a dita, sem nos entregarmos nem ao curso «natural», nem aos acidentes – ao acaso. Se a vida me foi dada, a minha liberdade deve ir até decidir do seu limite. Se devo preparar-me para a morte, que ela seja voluntária. Em função de que critério fixar esse limite? A resposta só pode ser individual. Pela parte que me toca, o sensualismo leva-me a preservar a minha integridade física. Pessoalmente, a ideia de prótese afigura-se-me contrária à vida – e assumo os riscos duma concepção deste género, por muito que os meus dentes se descarnem, que a minha vista esteja a baixar rapidamente e que, ao cabo de trinta anos de caminhada sem sapatos, os meus pés comecem a deformar-se… Vaidade é certamente: está em causa uma imagem de mim que nenhuma maquilhagem poderia restituir-me ou reconstituir. Quando «eu» se torna um outro, já morreu um pouco. Digamos simplesmente que a fórmula «viver para viver» é absolutamente oca, que se trata de viver pelos valores que forjámos e pelos prazeres de que fruímos. Viver para amar, se quisermos. Porque, no fundo, é a minha capacidade de amar que sinto obscuramente diminuir. Ou a minha capacidade de desenvoltura. Ou a minha capacidade de humor. Por agora, limito-me a encarar o limite, a fixá-lo, a olhar de frente para a morte. E só penso no suicídio por ter consciência de ter vivido bem, por nada querer mudar ou trocar na minha vida. Por ter vivido suficientemente bem para que qualquer prolongamento artificial da minha vida me pareça perfeitamente irrisório. Suicidar-se é ter escolhido a vida.”
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