Estranho amor

>> setembro 21, 2009

Há sem dúvida um mal que os homens acumulam no seu desejo arrebatado de unidade. Mas outro mal ainda se verifica na origem deste movimento desordenado. Perante esse mal, perante a morte, o homem clama justiça no mais profundo do seu ser. O cristianismo histórico não respondeu a esse protesto contra o mal a não ser por meio do anúncio do reino, depois, pelo da vida eterna, expectativa que exige fé; por isso se mantém solitário e sem explicação. As multidões trabalhadoras, cansadas de sofrer e de morrer, são multidões sem Deus. O nosso lugar é, a partir de então, junto delas e longe dos antigos e novos doutores. O cristianismo histórico transfere para lá da história a cura do mal e do assassínio que, no entanto, na história se suportam. Também o materialismo contemporâneo julga responder a todas as perguntas. Mas, na sua totalidade de servidor da história, ele dilata o domínio do assassínio histórico e deixa-o ao mesmo tempo sem justificação que não seja relegada para tempos futuros, o que novamente exige fé. Há, nos dois casos, que esperar e, entretanto, o inocente continua a morrer. Em pleno século vinte e um, a soma total da crueldade não diminui no mundo. Nenhuma parúsia, nem divina, nem revolucionária, se cumpriu. Subsiste, colada a todos os sofrimentos, uma injustiça, mesmo que aos olhos humanos seja considerada bem merecida.

A revolta não pode prescindir de um estranho amor. Os que não encontram descanso nem em Deus nem na história, condenam-se a viver para quem, como eles, não pode viver: para os humilhados. Esta loucura generosa é a da revolta, que oferece imediatamente a sua força de amor e com a mesma brevidade recusa a injustiça. A sua honra consiste em nada calcular e em tudo distribuir à vida presente e aos seus irmãos vivos. É assim que se vai prodigalizando em relação aos homens futuros. A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo ao presente.
Assim prova a revolta ser o próprio movimento da vida e afirma que não pode ser negada sem que se renuncie a viver. Cada vez que ela se solta no ar a pureza do seu grito, provoca uma atitude corajosa em mais um ser. Ela é portanto amor e fecundidade, ou então nada é. A revolução sem honra, a revolução do cálculo que, preferindo um homem abstracto ao homem de carne, nega o ser tantas vezes quantas considerar necessário, coloca precisamente o ressentimento no lugar do amor. Assim que a revolta, esquecida das suas generosas origens, se deixa contaminar pelo ressentimento, nega a vida; corre para a destruição e faz erguer-se a coorte desprezível desses rebeldezinhos, semente de escravos, que actualmente acabam por se oferecer, em todos os mercados mundiais, a qualquer servidão. Já se não trata de revolta nem de revolução, mas de rancor e tirania. Nessa altura, quando a revolução se converte, em nome do poderio da história, nessa mecânica assassina e desmesurada, uma nova revolta se torna sagrada, em nome do equilíbrio e da vida. Encontramo-nos nesse extremo. No fim das trevas, contudo, torna-se inevitável a eclosão da luz que começamos a adivinhar e pela qual apenas teremos de lutar para que ela se manifeste. Para além do niilismo, todos nós, no meio das ruínas, preparamos um novo renascimento. Mas poucos sabem disso.
E, com efeito, a revolta, sem aspirar a resolver todas as coisas, pode já, pelo menos, opor-se. A partir desse instante, o meio-dia imunda o próprio movimento da história. Em volta desse braseiro devorador, agitam-se por momentos combates de sombras, que desaparecem, e de cegos que, levando as mãos às pálpebras, gritam que isto é história. Os homens da Terra, abandonados às sombras, afastaram-se do ponto fixo e radiante. Esquecem o presente por amor do futuro; os seres escravizados, pelos fumos do poder, a miséria dos subúrbios, por amor de uma cidade radiosa e a justiça quotidiana por uma vã terra prometida. Perdida a esperança quanto à liberdade das pessoas, sonham com uma estranha liberdade da espécie; recusam a morte solitária e chamam imortalidade a uma prodigiosa agonia colectiva. Já não acreditam puerilmente que amar um só dia da existência equivalia a justificar os séculos de opressão. Essa a razão por que eles quiseram a alegria do mundo, adiando-a para outros tempos. A impaciência dos limites, a recusa do seu duplo ser, o desespero de ser homem, precipitaram-nos por fim num descomedimento desumano. Negando a justa grandeza da vida, tiveram de apostar na própria excelência das suas pessoas. À falta de melhor, divinizaram-se. Assim começou a sua desgraça: esses deuses são de olhos vazios.

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